quarta-feira, 22 de abril de 2009

Conto 01 - Apenas Mais Uma Madrugada - Parte 01


Fui abrindo olhos e a luz amarela do semáforo que piscava fazia doer ainda mais minha cabeça e tirando a nitidez das coisas que eu tentava enxergar. Levantei a cabeça e tudo girava como um brinquedo de parque de diversões de luzes coloridas em ritmos desencontrados. As luzes dos prédios se misturavam com as do letreiro do posto de gasolina me deixando cada vez mais enjoada. Então fechei os olhos e elas continuavam lá. Senti meu rosto gelado, a boca fria e seca, e as mãos trêmulas ainda seguravam o volante como se assim eu ainda tivesse o controle das coisas. Abri os olhos. Eu estava no meu carro e o silêncio era quebrado pelo som do cd do carro que picotava uma música de uma cantora de voz fina, parecia bossa nova. Eu odeio bossa nova. Desliguei. Sentia cada vez mais minha cabeça doer e agora já percebia minhas pernas cruzadas em baixo do volante que também reclamavam. Descruzei as pernas e puxei o espelho do carro pra ver em que estado eu me encontrava. Os olhos vermelhos, maquiagem borrada, cabelos bagunçados e a marca do volante do queixo até a testa me faziam ver que nada estava bem. Tentei ajeitar o cabelo esboçando uma reação, mas tudo começou a girar novamente. Fechei os olhos e respirei fundo. Fui abrindo os olhos lentamente tentando fixar um ponto em frente na tentativa de fazer tudo parar de rodar. Eu não tinha a mínima noção de onde eu estava e isso me assustou por alguns segundos. Olhei pelo vidro direito do carro e vi luzes refletidas no chão. Olhando o posto de gasolina à esquerda tive a certeza, eu estava na Lagoa. O céu mudava para um azul escuro, era madrugada e estava amanhecendo. Percebi então que alguns carros passavam atrás do meu e que eu estava parada em cima da calçada atravessada entre a margem da Lagoa e a pista de ciclismo. Mas o que eu tava fazendo ali? Minha cabeça doía cada vez mais, num rompante de enjôo abri a janela e vomitei sei lá o que. Eu precisava sair dali.


Não se lembrava de nada. Não tinha a mínima noção de aonde vinha. Por ser madrugada de sábado, provavelmente de alguma festa. Como lembrar que era madrugada de sábado? Provavelmente com muitas bebidas na cabeça, como era de costume, devia estar indo pra casa depois de uma noite entorpecida e frenética como era habitual. A saia curta, a blusa preta, a sandália de salto e a maquiagem pesada confirmavam o prognóstico.

Eu precisava sair dali. Meu corpo não obedecia minha pressa então lentamente abri a bolsa que estava no banco do carona para achar meu celular. Eu tinha a consciência que precisava chamar alguém. Mergulhando a minha mão bolsa adentro saco logo algo vermelho, era um sutiã. Jogo ele no chão do carro e continuo procurando meu aparelho de celular. Puta que pariu! Sempre perco o celular. Abaixo pra pegar o sutiã e colocar de volta na bolsa e pela posição e com a blusa caída vejo meus seios. Estou sem sutiã. Mas minha calcinha era preta. Na carteira tinha uma nota de cinqüenta reais. Fecho tudo dentro da bolsa, coloco no colo e seguro o volante com firmeza. Eu precisava me concentrar, respirar fundo e tomar coragem de sair e fazer o que tinha que ser feito. A cabeça que latejava como um tambor e os olhos pequenos e embaçados precisavam se ordenar. Abri a porta do carro e fui botando minhas pernas pra fora e tirando forças sei lá de onde, me impulsionei no banco do carro e me pus em pé do lado de fora. Tudo era pior do que eu pensava e logo me vi ajoelhada no asfalto e a buzina de um carro estremecer todo o meu corpo. Me levantei não sei como e fiz sinal para um taxi que vinha lentamente. Na verdade tudo parecia muito lento a não ser pelas luzes que, com o movimento da minha cabeça, se movimentavam como lêiseres. Cambaleando entrei no taxi e de pronto falei logo o meu destino. O carro arrancou e de forma brusca cai para trás, deitada no banco. Então apaguei.



Devia se sentir segura por não estar mais sozinha e seguindo o destino de casa. De olhos fechados flashes do que poderia ter sido a noite anterior. Imagens de copos, bocas beijadas, risos e sorrisos diversos e uma música marcada repetitiva faziam sua confusão mental. E como saber, se sua vida era sempre assim. Uma rotina de saídas noturnas, alcoólicas e orgásticas. Começava a noite como uma pessoa qualquer. Bebia um vinho com os amigos mais caretas e logo depois se juntava com os que compartilhavam com o mesmo estilo de vida. Freqüentava sempre as mesmas boates que proporcionavam encontros fáceis e casuais que sempre terminavam em sexo. Uma mulher linda e sensual com comportamento liberal, beirando a promiscuidade, não condizente com seu nível social que exige um comportamento mais requintado, assídua dos buracos mais quentes da Lapa às boates mais “fakes” de Ipanema. Criava seu próprio mundo e nele se consumia. Tentava se encontrar fugindo de qualquer tipo de normalidade. E assim se perdia. Lembrava de ter beijado algumas bocas. Um corpo moreno num banheiro apertado entre o vaso sanitário e a parede suja. Uma mordida no pescoço, uma língua macia, um pau entre as pernas e uma marca roxa no seio direito. Na pista de dança deslizava entre dois corpos suados. Uma mão branca puxava seu cabelo e novamente na parede liberava seu gozo.
Ela tinha dessas coisas. Precisava extravasar tudo o que sentia. Um descontrole emocional capaz de amar e odiar ao mesmo tempo, gozar e sofrer. Sentia a necessidade de invadir e ser invadida. Tinha que sentir todo seu corpo estremecer, vibrar e transpirar todo o tesão constante que reprimia durante o dia. Não media esforços, não tinha pudor para que isso acontecesse. E assim não se sentia sozinha. Uma trepada era sempre uma trepada. Como se ela se virasse do avesso. Não fingia. Nunca fingiu, não precisava disso. Sentia prazer em qualquer toque sexual e seus toques sempre eram sexuais. Sabia trocar muito bem. Sabia chupar e ser chupada, meter e ser metida, bater e apanhar. Tudo valia em função do prazer. De olhos abertos observava a presa entre as pernas num jogo de domínio e poder. Às vezes era a caçadora, às vezes a presa. E assim seguia o seu jogo. Gostava de observar os cinco segundos que precediam o gozo masculino. Os cinco segundos antes em que o homem fica vulnerável e incapaz de qualquer ação ou reação que não seja a gozada final. E ela assistia de olhos abertos imaginando perversidades nos cinco segundos finais.
E voltava sempre pra casa sozinha. Liberava toda sua angustia e tensões na rua. Sua casa era o templo de paz e descanso para tudo que havia feito pelos cantos do Rio de Janeiro. E deitada na sua cama de olhos fechados esquecia tudo que havia feito há horas atrás. Como se nada tivesse acontecido. Não era de ter sonhos eróticos, mas quando tinha gozava como se estivesse acordada. Mas no outro dia, tudo se repetia. Quartos de motéis, escadas de incêndio, banheiros de boates, carros desconhecidos... qualquer lugar permitido pelo seu fetiche.


Abri os olhos e vi a igreja na entrada da Barra. Tava perto de casa. O taxista de olhos arregalados me olhava pelo espelho retrovisor e me pergunta se está tudo bem. Não sei se respondi. Minha cabeça que ainda doía tinha ganhado um som a mais. Um zumbido agudo que atravessava minha cabeça de um ouvido a outro. Eu queria morrer. Bati várias vezes com as mãos na cabeça bem forte pra ver se parava de doer e zumbir. Nada acontecia. Mesmo sabendo que seria pior, procurei na bolsa um cigarro. Precisava sentir algo diferente nem que fosse outro enjôo. A carteira de cigarros tava vazia, mas no fundo da bolsa tinha um cigarro caído. Peguei o isqueiro e acendi. Cacete! Acendi do lado contrario. Joguei o cigarro fora pela janela junto com o isqueiro que tava na minha mão. Vejo o motorista me olhar e retirar do porta-luvas um maço de cigarros. Ele coloca um cigarro na boca, acende e me dá. Não sei se agradeci. Era o pior cigarro da minha vida. Que gosto horrível. Tentei ver no filtro a marca, mas tudo girava. Essa hora já via o mar. Graças a Deus, eu já estava na Sernambetiba. O taxi pára. Eu pago e desço. Não sei se peguei o troco. O taxista fica observando eu entrar no prédio. Em passos desordenados entro porta adentro. Nunca o oitavo andar foi tão longe. Mal entro em casa fui tirando a roupa. Jogo os saltos longe, tiro a saia colada no meu corpo, na ânsia de tirar a blusa acabo rasgando uma parte que é de renda. Merda! Quebrei a unha! Ainda desorientada vou até o banheiro. Olho no espelho. O rímel escorrido pelo o rosto como se eu tivesse chorado uma noite inteira. Não me lembro de ter chorado. Abro a ducha até o fim. Sem forças sento no azulejo frio e ali fico até me sentir um pouco melhor. Quase adormeço mesmo com o jato da ducha forte batendo no meu corpo deixando minhas costas vermelhas. Saio e me seco numa toalha branca que absorve o resquício da minha maquiagem. No espelho vejo o meu corpo. As coisas agora giram em outro ritmo. Há marcas roxas pelas minhas pernas, barriga e pescoço. Vou em direção ao meu quarto e me jogo nua em cima da cama. Não há mais o que fazer.


Há alguns dias atrás tinha saído decidida a transar só com caras que já havia transado. Botou um vestido vermelho qualquer e foi para a boate das quartas-feiras. Numa mesa de canto já tinha uma mão entre suas pernas, molhada e uma língua percorrendo seu pescoço. E no ouvido, palavras que gostava de ouvir. Ele sabia quais eram. Ela sabia gozar fácil e baixinho e assim fez. Pediu mais uma bebida. Foi até o banheiro, precisava respirar. Escorada na porta com um destilado gelado na mão vê um homem alto, moreno de cabelos bem cortados e cicatriz no queixo vindo em sua direção. Com o olhar confuso refaz o foco. Ela o reconhece. Eles tinham se conhecido num aeroporto no inverno passado. Ela ainda lembrava-se dos esquis. E assim o assunto rolou. Ela não prestava a atenção em nada que ele dizia. Seus olhos estavam fixados em sua boca. Com certeza em sua cabeça, já havia percorrido todo aquele corpo e todas as posições que mais gostava já estava fazendo. Ainda só em sua cabeça. Lógico que o banheiro foi o primeiro lugar. De costas apertava os seus seios e metia com tanta força que a fez berrar. Segurando seu cabelo, puxando para trás mordia seu pescoço até que gozasse. Que ele gozasse. Ela não. E ele parou. Com raiva ela sai do banheiro e vai em direção a porta. Ele a segue. Mas tudo acabou. “Há alguns dias atrás tinha saído decidida a transar só com caras que já havia transado”. Ela havia esquecido. Precisava de outro lugar.


Acordo ainda confusa. A luz do rádio relógio piscava. Deve ter faltado luz. É dia e o sol entra por uma fresta da janela me cegando. O gosto na boca do cigarro ganhado misturado com o gosto de álcool me faz ir até o banheiro e escovar os dentes. A pasta de dente me enjoa e vomito ali na pia mesmo. Nem tenho mais o que vomitar. Vou até a cozinha em passos quadrados e pego na geladeira uma garrafa de água gelada solitária que faz companhia a uma caixa de comida chinesa aberta e dura. Nada vai bem. No armário acima da pia pego um pouco de sal e jogo debaixo da língua. Preciso reagir. Vou até a varanda pegar um pouco de ar. Vejo o vizinho do lado me olhar assustado. Esqueci. Tô nua! Nem ligo. Sento mesmo assim na cadeira dura de madeira e por alguns segundos observo o mar. A luz do sol me cega. É melhor entrar. Sento no sofá de couro preto ao lado do telefone. Uma mensagem pisca na secretária eletrônica. Não tenho cabeça para ouvir. Deito e coloco a garrafa gelada na cabeça. As coisas têm que melhorar. A luzinha vermelha da secretária pisca irritantemente. Vou acabar com isso. Ouço a mensagem. Por um momento congelo. Não entendi. Repito a mensagem cinco, oito, quinze vezes. Não consigo entender: “Você é uma delícia”. Ouvi mais umas quinze vezes tentando entender porque a voz da mensagem era a voz de uma mulher.


Um novo universo se abriu.